Já escrevi algumas crônicas sobre Clarice Lispector ou a mulher com "a flor no peito" (lis pector em latim). Penso que ela não tinha só uma flor no peito, mas um jardim inteiro e dele emanava uma sensibilidade que a fez escrever de um modo que mudou a forma de muitas pessoas perceberem a literatura. Num país no qual o realismo social nos anos 1950/1960 dominava os livros de autores conhecidos - como Jorge Amado e Graciliano Ramos - Clarice apareceu com uma escrita fluida que trazia mais que emoções, percepções do mundo.

A impressão é que ela olhava a vida em detalhes que passam despercebidos pela maioria das pessoas, os pelos aveludados de uma aranha no Jardim Botânico ou um cálculo sem resultados do "peso da luz" são imagens que saltam de seus livros e me fazem pensar: "como nunca observei isso antes?"

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. | Foto: Marco Jacobsen

Dos seus livros, o meu preferido é "Água Viva" que me coloca num estado entre o encantamento e a perplexidade. Para falar dele, plagio a mim mesma em outro texto sobre Clarice, porque nem sempre as palavras estão à disposição no momento em que precisamos delas: "(o livro ) é subjetivo e forte como ser levada ao centro do furacão. Como um pássaro que se debate quando a armadilha se fecha, depois me resta a quietude para saber, afinal, o que se passou.A armadilha das palavras provoca-me um assombro poético que significa beleza e perigo, com os alertas da sensibilidade piscando para a transposição a um nível de consciência do qual nunca sei se voltarei a tempo. Antes do choro ou do riso, protegida pela leitura intelectual, protegida dos excessos afetivos."

Quando escrevi esse texto estava sob o impacto do fim da leitura de "Água Viva" e meu desejo era não voltar desse estado de espírito para os passos minúsculos do cotidiano. Mas aí pensei que Clarice bebia no cotidiano isso que se tornava o extrato da existência. Sempre li Clarice Lispector como se estivesse diante da eternidade, por isso sua partida precoce, aos 57 anos em dia 9 de dezembro de 1977 (um dia antes de seu aniversário), deu-me a sensação de uma perda irreparável porque não viriam mais livros. Lendo a biografia de Nádia Battella Gotlib "Clarice - Uma Vida que se Conta", soube que naquela fase a escritora já se misturava aos seus personagens, sua vida já era uma grande obra. Mas eu queria mais, como todos os seus leitores.

Sabemos que uma expectativa dos escritores é apreender em palavras o não dito, uma tarefa especial que na maioria das vezes falha porque a vida sempre se excede, sem o limite das páginas e de um autor sobre elas, tentando apreender o inapreensível. Clarice Lispector chegou a capturar o que vai pelas fibras do coração, dos nervos articulados entre a mão e a escrita. Um território de onde emana uma eletricidade que se torna a conexão com o que se cria, uma sinapse entre vida e obra.

Nos 100 anos de Clarice Lispector - completados no último dia 10 - ainda há muito a se dizer sobre ela, um exercício de percorrer, analisar e sentir palavras. Como já disse em outro texto, "palavras doces e selvagens, palavras temperadas como aço, espada e pluma. Cortando e acariciando a vida em ondas que escapam à sintaxe."