Conhecer para ser livre
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quarta-feira, 25 de novembro de 2020
Marco A. Rossi
Dias atrás, relendo um artigo de Mario Vargas Llosa, recordei que o conhecimento é uma grande aventura na história. Ninguém nasce sabendo. Aprendemos de acordo com as andanças do tempo e as circunstâncias que nos cercam. Assim como não era possível ao homem da Antiguidade demonstrar saberes sobre algoritmos de internet, não é recomendado aos contemporâneos ignorá-los. Ao habitar o mundo, tornamo-nos responsáveis por ele, por nós, por todos.
Conhecer é um verbo que só se conjuga em liberdade. Em todos os lugares em que a liberdade é impedida, o conhecimento é restrito e se torna um instrumento de poder e opressão. O que dizer, então, de sociedades livres em que indivíduos, deliberadamente, recusam as evidências científicas e preferem o atoleiro do negacionismo? Recusar o óbvio e optar pelos abismos da paranoia é abrir mão da liberdade.
No filme “Ventos de liberdade” (“Baloon”, na produção original de 2018), duas famílias, na velha Alemanha Oriental, planejam transpor o Muro de Berlin dentro de um enorme balão. Além de recuperar a estética da época, o diretor Michael Herbig reproduz o clima da Guerra Fria, das disputas ideológicas que cindiram o mundo. No final, dizem as circunstâncias, a liberdade só será possível do lado de lá, longe de olhares opressores, onde se possa sonhar ser diferente e igual ao mesmo tempo. O filme é baseado numa história real, em que o desejo de liberdade não conheceu fronteiras.
“Ventos de Liberdade” me pôs diante das interessantes aproximações entre liberdade e autonomia, que o saudoso José Guilherme Merquior teoriza no início de seu obrigatório “Liberalismo, antigo e moderno”, de 1991. Segundo Merquior, o tempo histórico assistiu ao desenvolvimento de quatro tipos básicos de liberdade, cada um deles relacionado com uma etapa no desenvolvimento da autonomia dos seres humanos.
A primeira, imemorial, se dá na luta contra a opressão. Nunca houve povo ou indivíduo que não lutasse contra as correntes que aprisionam corpo e mente. Trata-se da busca da liberdade como intitulamento, ou seja, como direito a ter um lugar no mundo, uma função reconhecida pelo grupo. Tornar-se alguém e estar livre da discriminação, isso é o mínimo para que haja indivíduos verdadeiramente autônomos.
A liberdade política, um tema associado à cultura grega, vem logo em seguida. A autonomia requer o direito de participar nos assuntos da comunidade a que se pertence. Na sequência, surgem a liberdade de consciência e religião – nascida dos berços da Reforma e indispensável à autonomia das ideias e crenças – e a liberdade para a realização pessoal –uma modalidade moderna da autonomia, ligada à possibilidade de viver como se queira, onde se pretenda, do modo como pareça mais interessante.
Liberdade é uma provocação à inteligência. Para ser verdadeiramente livre, é preciso ser autônomo e, ao mesmo tempo, reconhecer as conquistas civilizatórias. Não há autonomia para não tomar vacina ou alegar fraude onde ela nunca existiu. Defender isso é abdicar da condição de ser livre.