O número de queixas contra operadoras de planos de saúde registradas por paranaenses nos serviços de atendimento ao consumidor aumentou 61% entre 1 de janeiro e 22 de maio de 2024 na comparação com igual período do ano passado. Somadas, as reclamações recebidas pelo Procon e pela plataforma Consumidor.gov.br saltaram de 728 para 1.172. Entre os principais motivos da insatisfação dos usuários estão a negativa de cobertura total ou parcial e o não fornecimento de serviço, categorias nas quais se incluem as rescisões unilaterais dos contratos. A prática, apesar de não ter amparo legal, tem se tornado cada vez mais frequente e motivo de judicializações por parte dos clientes que contratam o plano, mas ficam na mão na hora de utilizar o serviço.

Do total de reclamações feitas à plataforma Consumidor.gov.br neste ano, 12,19% referem-se a serviços que deixaram de ser prestados ou à recusa na cobertura total ou parcial. A plataforma on-line não especifica o número de contratos rescindidos por iniciativa das operadoras, mas a advogada especialista em direito na saúde e mestranda em direito na saúde Nilza Sacoman observa um aumento dessa conduta pelas seguradoras do país e alguns segmentos de usuários são mais atingidos, como pessoas com necessidades especiais, com doenças autoimunes e idosos. Não por coincidência, três grupos com alta demanda por assistência médica.

A situação é agravada pelo fato de que muitas operadoras que cometem essa irregularidade não avisam o cliente sobre o encerramento do contrato. Assim, são comuns os casos em que o beneficiário descobre que não tem mais a cobertura justamente na hora em que precisa dela. Os prestadores de serviço alegam prejuízos na manutenção desses segurados em seu quadro de clientes. Mas com ou sem aviso prévio, alertou Sacoman, a rescisão é ilegal e contra ela cabe ação judicial.

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“O plano de saúde não tem nenhuma previsão legal de cancelar o contrato por onerosidade excessiva. O que acontece é que o plano não quer o beneficiário que lhes dê um custo excessivo. Cancelam e não falam que cancelaram. Sequer notificam o usuário”, disse a advogada. “É ilegal, é violação do direito do consumidor e toda pessoa que passa por isso tem que entrar com ação de danos materiais e morais e ir à polícia denunciar essas empresas por estelionato”, orientou Sacoman.

Os tribunais têm sido bastante sensíveis em manter os contratos cancelados por decisão unilateral por entenderem se tratar de uma medida predatória, proibida pelo Código Civil e também pelo Código de Defesa do Consumidor. A advogada ressalta que a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), órgão federal que regulamenta o serviço, prevê cancelamentos apenas em casos de inadimplência por um período de 51 dias corridos ao longo de 12 meses, mas com aviso prévio e prazo de dez dias para regularização do débito.

Mas mesmo quando o cancelamento ocorre por atraso no pagamento da mensalidade, ressaltou Sacoman, há divergência de entendimento na Justiça. “Existem discussões que se o usuário paga juros e correção por atraso, a operadora não poderia romper o contrato. Só poderia cancelar se não cobrasse juros e multa. Com os atrasos, as empresas poderiam, no máximo, suspender o serviço. Os tribunais já têm discutido dessa forma.”

Na plataforma Consumidor.gov.br, são inúmeros os relatos de segurados que ficaram sem atendimento. Quando a busca é feita pelo recorte das especificidades dos beneficiários, há entre eles vários pais de crianças ou pessoas diagnosticadas dentro do TEA (Transtorno do Espectro Autista) e também idosos. Boa parte das reclamações refere-se à dificuldade de conseguir que as operadoras façam o reembolso por procedimentos pagos pelos pacientes, mas há um número expressivo de usuários que teve o plano cancelado. A situação é ainda mais complicada porque muitos deles, por sua condição clínica e idade, não conseguem contratar um novo plano. Uma clara demonstração de que embora atuem no setor da saúde, as seguradoras não têm interesse em fechar contratos com usuários que necessitam usar os serviços médicos com maior frequência, em uma atitude discriminatória.

No entendimento da advogada, qualquer que seja o motivo alegado pelas empresas de planos de saúde, a rescisão unilateral é nula. “As operadoras agem de forma abrupta, violenta com o consumidor, que não pode se intimidar”, afirmou. “Isso acontece com o idoso, o doente autoimune, elas (empresas) cometem um estelionato. Na hora de contratar, vendem uma história maravilhosa de benefícios que o cliente vai ter. As piores empresas que temos hoje, no Brasil, são os planos de saúde”, avaliou Sacoman.

Um projeto de lei que tramita há quase 20 anos na Câmara dos Deputados trata de alterações em algumas regras que regem o mercado dos convênios. O texto, de 2006, propõe cerca de 270 modificações na legislação, incluindo uma possível proibição do cancelamento unilateral dos contratos coletivos. “Essa revisão é vital para a segurança do segurado e colocar um freio nas operadoras", disse a advogada.

Enquanto a lei não é aprovada, decisões anteriores do STJ (Superior Tribunal de Justiça) determinaram a reversão dos cancelamentos contratuais realizados por interesse exclusivo da operadora, o que criou uma jurisprudência sobre o assunto em favor dos usuários. No último dia 21 de maio, a Justiça do Distrito Federal concedeu liminar proibindo os planos de saúde de excluírem pacientes autistas do serviço, exceto em casos de inadimplemento, sob pena de multa diária no valor de R$ 59 mil. A decisão se estende também a pessoas com doenças raras e paralisia cerebral.

Devido ao aumento dos casos e reclamações sobre cancelamentos, a ANS divulgou em seu portal, no dia 20 de maio, uma nota com esclarecimentos sobre vários pontos referentes a essa conduta. Entre eles, a agência reguladora enfatizou a proibição da prática de seleção de riscos, explicou que nenhum cidadão pode ser impedido de contratar um plano de saúde e que a rescisão contratual pelas operadoras deve obedecer às regras estabelecidas no momento da assinatura do convênio.

Levantamento realizado pela ANS apontou, em abril, aumento de 170% no número de reclamações sobre rescisão unilateral de contratos em planos coletivos por adesão. Em 2024, foram 524 queixas contra 194 no mesmo mês do ano passado.

O coordenador do Procon em Londrina, Thiago Mota Romero, orientou os usuários que tiverem o tratamento negado a pedirem orientação jurídica a um advogado ou Defensoria Pública para que o procedimento administrativo e judicial seja feito de forma a garantir os direitos dos beneficiários. Mas a primeira providência, disse ele, deve ser registrar uma reclamação na Central de Atendimento ao Consumidor da ANS. “Caso o procedimento não seja solucionado de forma administrativa, é necessário entrar com reclamação no Procon e/ou ação judicial para garantir o tratamento mais adequado.”

Procurada pela reportagem, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) informou, em nota, que com o objetivo de garantir a qualidade na prestação dos serviços de saúde e a sustentabilidade dos contratos, as operadoras avaliam continuamente cada um dos seus produtos comercializados em conformidade com as regras da ANS. “Essa avaliação pode indicar a necessidade de readequar a estrutura dos produtos (planos de saúde) e descontinuar outros”, disse a entidade.

A Abramge ressaltou, ainda, que pode haver a rescisão do contrato entre as pessoas jurídicas – a empresa contratante e a operadora – a pedido de uma ou outra parte, devendo ser sempre precedida de notificação prévia, conforme disposições contratuais. E a entidade lembrou do direito à portabilidade que permite ao beneficiário elegível trocar de plano de saúde sem a necessidade de cumprir novos prazos de carência ou cobertura parcial temporária.