Chico Buarque acaba de completar 80 anos de idade com uma série de homenagens. Entre elas está o lançamento de “Chico Buarque em 80 Canções”, livro do jornalista e escritor André Simões publicado pela editora 34.

Na obra, Simões analisa 80 canções do compositor, do primeiro disco, “Pedro Pedreiro” de 1965, ao mais recente single, “Que Tal um Samba” de 2022. Uma análise que envolve letra, música, contexto histórico, características de composição, recursos literários, contexto cultural, arranjos, gravação, interpretação e muito mais.

Para o autor, as músicas de Chico Buarque não devem ser analisadas separando letra e música, mas como canções plenas onde música e letra são indissociáveis. Devem ser analisadas como obra de um cancioneiro. O próprio Chico afirmou que as pessoas sempre deram mais importância às letras de suas canções, e que ele sempre deu maior importância à música. E resumiu: “Olha, só fiz essa letra porque a música pedia. Isso não é poesia, é canção.”

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“Chico Buarque em 80 Canções” oferece um amplo panorama da criação musical do compositor, uma arte capaz de dar origem a um grande leque de sentimentos e emoções. A edição traz a discografia completa do artista, iconografia dos discos e playlist das canções comentadas através de QR Codes para plataformas digitais de música.

Pesquisador de canção popular brasileira, André Simões é autor de “Francis Hime: Ensaio e Entrevista”, “23 Minutos Contados no Relógio” e “A Arte de Tomar um Café”.

A seguir Simões fala sobre seu novo livro e a obra musical de Chico Buarque de Hollanda.

André Simões: "Dá para não ser petista de carteirinha, amante do governo cubano ou militante identitário e ainda assim amar as canções do Chico, eu garanto"
André Simões: "Dá para não ser petista de carteirinha, amante do governo cubano ou militante identitário e ainda assim amar as canções do Chico, eu garanto" | Foto: Divulgação

Qual foi seu interesse em escrever um livro sobre as canções de Chico Buarque?

Homenageá-lo no seu aniversário de 80 anos. Embora muito já se tenha escrito sobre a obra dele, achei que conseguiria contribuir com análises originais, usando ferramentas específicas para tratar da canção popular. É muito limitador isolar a letra para tratar das canções do Chico, como acontece na maioria dos estudos publicados – alguns deles excelentes e inspiradores, é verdade.

Mas eu queria algo mais completo, que integrasse música, letra, arranjo, interpretação, contexto histórico, recepção etc. Quase todo mundo, ao ouvir as canções do Chico, sente que está diante de algo belo, mas por que essas canções são belas, o que as faz belas? Busquei fugir da abstração mítica e apontar objetivamente elementos que ajudam na resposta. E para que não me acusem de falta de pretensão, tentei ainda uma linguagem leve, de crônica, sem sacrificar a profundidade analítica.

No livro você revela que além de rigor musical, as canções de Chico Buarque possuem rigor literário. Que recursos literários Chico utiliza em suas composições?

Chico tem um grande domínio das técnicas de versificação, notadamente figuras de sonoridade, esquemas rigorosos de rima, simetria. Incluí um glossário no livro, para que leitores sem tanto repertório em teoria musical e estudos literários possam entender algumas questões pontuais – mas acho que quem quiser passar por cima dos termos mais cabeludos ainda consegue acompanhar a leitura.

O bacana é que o rigor formal do Chico não o deixa preso, suas imagens são muito ricas e originais, com temáticas e tons muito variados. Mas, acima de tudo, as letras se casam com as músicas de maneira muito eficaz. Com o perdão do lugar-comum, é um caso em que o todo é maior do que a soma das partes.

Em “Chico Buarque em 80 Canções” você revela como o compositor criou dezenas de canções utilizando o ponto de vista feminino, o eu lírico feminino, algo pouco usual na tradição da MPB. O que isso representa?

A prolificidade do Chico em canções de eu feminino está diretamente ligada à produção dramática: 85% das canções femininas que ele escreveu são para teatro ou cinema. E ele aproveitou essa situação para criar uma forma de acinte ao poder estabelecido em tempos de ditadura militar. Não era permitido criticar o governo, mas expor a voz de mulheres falando naturalmente de sua sexualidade era uma forma de ferir o conservadorismo. Até havia canções em que mulheres falavam de sexo na tradição do cancioneiro do Brasil, mas quase sempre eram canções maliciosas, com tentativa de comicidade pelo duplo sentido. Muito reiteradamente nas canções femininas do Chico, o desejo sexual anda junto aos sentimentos mais ternos: não há oposição entre tesão e pureza.

Que critério você utilizou em selecionar 80 canções entre as centenas de músicas compostas por Chico ao longo de décadas?

Escolhi pelo menos uma canção de cada álbum de carreira do Chico. E aí entraram canções muito prestigiadas e difundidas, que não poderiam ficar de fora (“A Banda”, “Roda-Viva”, “Construção”, “O Que Será”), junto a outras que são favoritas pessoais minhas, menos conhecidas (“Qualquer Canção”, “Já Passou”, “Embarcação”, “Tango de Nancy”). E mesmo eu tendo selecionado o número expressivo de 80 canções, não foram poucos os que vieram reclamar por causa de algum título que não entrou no livro – mais uma evidência da enorme riqueza dessa obra. O Paulo Malta, meu editor na editora 34, não se conformou de eu não ter colocado “Olê, Olá”. A Olivia Hime achou um erro grave eu ter deixado “Morro Dois Irmãos” de fora. Faz parte!

Após analisar detalhadamente as canções de Chico Buarque, como você sintetiza a obra do compositor dentro da história da música brasileira?

Chico Buarque é dos maiores nomes da canção mundial de todos os tempos. Para entender a dimensão de sua obra, é fundamental entendê-lo como cancionista, respeitar a canção como gênero autônomo. É estapafúrdio compará-lo com Bach ou com Fernando Pessoa, porque estes não fizeram canção popular. Mas nesse gênero, ele fica ombro a ombro com qualquer um que se escolha, de qualquer estilo, incluindo nomes dos chamados países centrais: Cole Porter, irmãos Gershwin, Irving Berlin, Rodgers & Hart, Bob Dylan, Lennon & McCartney, Stevie Wonder... Pode-se preferir um ou outro por gosto pessoal, mas Chico joga nesse time, em que entram ainda alguns outros brasileiros, mas não muitos – dispenso-me de nomeá-los para não melindrar quem eu deixasse de fora.

Nos últimos anos ganhou evidência nas redes sociais um movimento de extrema direita com objetivo de denegrir e rebaixar a obra de Chico Buarque. Você acha que esse movimento faz sentido?

Não chega a ser surpreendente. Artistas enormes já sofreram tentativas de rebaixamento por razões que não têm nada a ver com suas obras geniais. E não é apenas a direita que pratica essa estupidez: lembremos, entre outros, de Camus e Woody Allen, nossos Nelson Rodrigues e Wilson Simonal, vítimas de patrulhamento, mentiras, reducionismo.

Mas a arte sobrevive a essas questões políticas mesquinhas. Além disso, as canções do Chico, mesmo as claramente motivadas por algum acontecimento histórico, como as famosas canções de oposição ao regime de 1964, não são panfletárias, fazem sentido em outro contexto. Dá para não ser petista de carteirinha, amante do governo cubano ou militante identitário e ainda assim amar as canções do Chico, eu garanto.

Imagem ilustrativa da imagem 80 Chicos através de 80 canções: a trajetória de um grande compositor
| Foto: Divulgação

SERVIÇO:

“Chico Buarque em 80 Canções” Autor – André Simões

Editora – 34

Páginas – R$ 368

Quanto – R$ 87