O Bibliocircuito 2024, realizado entre 16 e 18 de maio em Londrina, foi dedicado à obra de Clarice Lispector, considerada por Antonio Callado entre "os autores geniais do Brasil", ao lado de Guimarães Rosa.

Sob o tema "Perto do Coração Selvagem de Clarice Lispector", o evento - patrocinado pelo Promic - foi idealizado por Luciano Bitencourt, com curadoria de Renato Forin Jr., Sueli Bortolin e Suely Leite. Na ocasião, veio a Londrina a pesquisadora e escritora Nádia Battella Gotlib, uma das maiores especialistas na obra da autora ucraniana, naturalizada brasileira, que criou livros singulares.

Autora da biografia "Clarice, Uma Vida que se Conta" e "Clarice Fotobiografia", Nádia falou a uma plateia lotada , na Biblioteca Pública de Londrina, sobre seu mais recente livro: "Clarice na Memória de Outros" (Autêntica/ 2024), fruto de uma pesquisa de quatro décadas. E quem são os outros? São escritores, artistas, jornalistas, amigos, familiares que abordam fatos da infância da autora, encontros mágicos, conversas íntimas, impressões pessoais sobre aquela que condensou em vida, através da literatura, um espectro luminoso de experiências que dão conta de sua visão de mundo tocada por uma imaginação rara.

Para organizar o livro, Nádia Gotlib pesquisou cartas, artigos, fragmentos anotações, poemas, crônicas e fez entrevistas com pessoas que conviveram com Clarice. O resultado é uma obra plural na qual várias vozes se encontram para interpretar ou apenas registrar a presença da autora em suas vidas.

Os modos de cada um ver a autora foi apresentado de forma sucinta aos londrinenses pela pesquisadora, tendo em vista a extensão da obra de 499 páginas. Mas a plateia do Bibliocircuito nem piscou os olhos na conferência "Ver e Ler Clarice Lispector".

Com propriedade e de modo informal, Nádia trouxe aos espectadores experiências únicas registradas no livro, como o depoimento de abertura "Diante da solidão de Clarice", da jornalista Ana Maria Machado.

Em 1975, a presença da jornalista foi insistentemente solicitada pela escritora que estava angustiada sobre o modo de estruturar o livro "A Hora da Estrela". Ana Maria, que havia escrito um artigo sobre Roland Barthers, recebeu inúmeros recados de uma Clarice aflita, à espera de que a jornalista solucionasse o quebra-cabeças da formatação de um de seus livros mais conhecidos. No quadro de recados da Rádio Jornal do Brasil, durante dias, mensagens se amontoaram com o apelo "Urgente: Ligar para Clarice Lispector quando chegar".

Na galeria de comportamentos de Clarice Lispector este é apenas um episódio de aflição. Na sua cabeça, a jornalista poderia estruturar seu texto já que escrevera sobre uma obra de um dos papas da semiologia. Clarice esperava o milagre do encaixe de significados de seu próprio livro, coisa que Ana Maria deixou claro que não poderia fazer porque não era a autora de "A Hora de Estrela", bem conceituado pela crítica no seu lançamento e que seria depois levado ao cinema por Suzana Amaral, em 1985.

Mas "A Hora da Estrela" não era o livro preferido de Clarice que o considerava comum, com começo, meio e fim.

Essa afirmação está numa entrevista que integra o livro de Nádia Gotlib, dada por Olga Borelli a Arnaldo Franco Junior. Olga, definida como secretária de Clarice muitas vezes, foi muito mais que isso. Foi companhia numa fase solitária da escritora, amiga, assistente, confidente, seguramente a presença mais próxima da pessoa e da persona de que se tem notícia.

SURREAL

Na entrevista, Olga conta como estruturou três livros: "Água Viva", "A Hora da Estrela" e "Um Sopro de Vida", porque Clarice escrevia em fragmentos que depois tinham que ser organizados. "Água Viva" é o livro sobre o qual mais se detém a entrevista. Fala-se dele como um texto que queima, como as coisas marinhas, e que nas respostas de Olga Borelli pode ser definido para além de um fluxo de consciência, como um processo de inconsciência na escrita.

Numa licença de interpretação, é possível dizer que Clarice Lispector tinha a característica surrealista de unir fortemente vida e literatura. Suas experiências se relacionam com a escrita automática, como preconizam os surrealistas, quando Olga Borelli afirma: "Ela não escrevia com "consciência". [...] Tanto que, quando ela lia posteriormente o que ela havia escrito, era sempre com surpresa. [...} Precisa haver uma inconsciência dessa parte motora do corpo em relação ao raciocínio para a coisa se automatizar, talvez seja por aí. O raciocínio era tão instantâneo, tão rápido, tão lógico, que supunha uma ...automação?"

E fica a interrogação sobre o processo criativo de um livro feito em regime de urgência, a pedido de um editor, mas produzido como um prenúncio do fim, escrito numa fase crítica da autora.

Na Biblioteca Pública de Londrina, Nádia Battella Gotlib falou de vários depoimentos reunidos no livro  "Clarice na Memória de Outros" a uma plateia atenta
Na Biblioteca Pública de Londrina, Nádia Battella Gotlib falou de vários depoimentos reunidos no livro "Clarice na Memória de Outros" a uma plateia atenta | Foto: Fábio Alcover/ Divulgação

PASSO A PASSO

Num depoimento registrado no livro de Nádia Gotlib vamos encontrar alguns passos de Clarice na infância, nos anos 1920, através de seus contemporâneos Anita Levy e Israel Averbuch, de famílias judias como ela, que estudaram no Colégio Israelita, em Recife, uma instituição pública que reunia alunos brasileiros e filhos de imigrantes.

No depoimento de Anita há um registro sobre a Livraria Imperatriz, de Jacob e Salomão Berenstein. A livraria é a mesma que Clarice Lispector cita no conto "Felicidade Clandestina", um dos mais emocionantes no gênero e que trata de suas tentativas de emprestar um livro, que ela não poderia comprar, da filha do dono da livraria. A relação entre ficção e realidade, mostrando a infância e os passos de Clarice na literatura, dá à obra de Nádia Gotlib um novo viés de descobertas.

A PAIXÃO

No livro também ganha clareza o que sempre ficou meio oculto: a grande paixão de Clarice pelo escritor Paulo Mendes Campos. O que sempre pareceu intocável sobre sua vida íntima ganha outra conotação nas palavras do escritor Autran Dourado e sua mulher Maria Lúcia que, na entrevista a Nádia Gotlib, falam do assunto, num misto de bate-papo, confidência e memória.

Há ainda depoimentos de artistas conhecidos, ídolos populares que reconhecem o encanto da autora de "A Paixão Segundo G.H.", obra-prima recentemente levada às telas com Fernanda Cândido como protagonista, sob a direção primorosa de Luiz Fernando Carvalho.

Bruna Lombardi fala no livro sobre uma visita à escritora, quando ficou numa sala entre a luz e a sombra. Chico Buarque faz o relato, já bastante conhecido, de como foi ao apartamento de Clarice juntamente com Vinicius de Moraes e Carlinhos de Oliveira, todos convidados para jantar, e após quatro horas de conversa, não havia jantar algum. Episódios assim dão conta da ambiguidade de Clarice, da luz à sombra, da certeza à dúvida, da quietude ao voo, nos levando sempre a uma lógica sensível ou a nenhuma lógica.

Também aparece a Clarice das frases doídas: "Vou ter que parar porque estou tão e tão cansada que só morrer me tiraria deste cansaço".

MERGULHOS

A autora que mergulhou na escrita como uma extensão da profundidade angustiante da vida, numa abundância de palavras, detalhes, símbolos que nos põem diante do indizível, embora dito, ao se cansar da jornada não dissimulou o quanto viveu. Na sua entrevista, concedida a Júlio Lerner à TV Cultura, em 1977, seu cansaço e desistência estão muito evidentes, como aquela que não se poupou à vida e não se poupou à morte.

No livro de Nádia Gotlib, da memória dos outros - daqueles que compartilharam vivências frugais ou intensas com Clarice Lispector - emergem olhares múltiplos que constroem e desconstroem imagens de um mito da literatura.

Em Londrina, na conferência no Bibliocircuito, Nádia afirmou que a reunião de cartas, depoimentos, entrevistas, fragmentos e crônicas também lhe ofereceu novos modos de ver e ler Clarice.

Para o leitor, fica o aprofundamento, mais uma vez e de novo, na vida e obra da autora que afirmou: "Eu escrevo como quem sonha." E os sonhos, como se sabe, não nos trazem certezas, mas dúvidas, na captação poética da realidade.

Imagem ilustrativa da imagem Clarice Lispector: dúvidas e clarezas no livro de Nádia Gotlib
| Foto: Divulgação

SERVIÇO

Clarice na Memória de Outros

Organização: Nádia Battella Gotlib

Editora Autêntica/ 2024

Quanto: R$ 75,74 (livro físico) e R$ 66, 90 (e-book) na Amazon