Um dos grandes poetas da língua francesa, Guillaume Apollinaire acaba de ganhar a primeira antologia brasileira, “Zona e Outros Poemas”, lançada pela editora Penguin-Companhia das Letras. O livro, em edição bilíngue, é organizado e traduzido pelo poeta e tradutor londrinense Rodrigo Garcia Lopes.

Apollinaire foi um poeta experimental e ao mesmo tempo lírico. Via a poesia como “um modo de expressão que traduz uma maneira apaixonada de sentir, de ver o mundo e de viver”. Para Garcia Lopes, “é esse frescor romântico, aliado a um profundo humor e leveza em ver a vida, o que nos atrai em sua poesia”.

Guillaume Apollinaire era o pseudônimo de Guglielmo Alberto Wladimiro Alessandro Apollinaire de Kostrowitzky. Filho de uma polonesa de ascendência aristocrática e pai desconhecido, nasceu em 1880 na cidade de Roma e ainda criança passou a viver em Paris.

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Com uma vida repleta de aventuras e confusões – foi preso acusado de roubar a “Mona Lisa” de Leonardo da Vinci do Museu do Louvre –, conviveu com figuras como Pablo Picasso, Henri Matisse, Alfred Jarry, Marc Chagal, Marcel Duchamp, Erik Satie, Jean Cocteau, Henri Rousseau, Max Jacob e George Braque. Esteve presente em todos os movimentos de vanguarda que revolucionaram o começo do século 20. Foi, por exemplo, o criador do termo “surrealismo”.

Nas palavras de Garcia Lopes, “Apollinaire é o poeta das analogias insólitas, das combinações inesperadas e provocantes, dos contrastes simultâneos. Alguém que vê o mundo como espetáculo, pura duração, ao propor a fusão de presente, passado e futuro. Para ele, o escritor não deve imitar ou descrever o real, mas, como nas telas de seu amigo Pablo Picasso que tanto o influenciou, dissecá-lo, desconstruí-lo e depois remontá-lo. Se possível adivinhá-lo, profetizá-lo.”

Apollinaire, um entusiasta do cubismo, fotografado no estúdio de Pablo Picasso em Paris, em 1910
Apollinaire, um entusiasta do cubismo, fotografado no estúdio de Pablo Picasso em Paris, em 1910 | Foto: Reprodução

“Zona e Outros Poemas” é um livro completo. Traz comentários de cada poema, um prefácio que esmiúça a vida e a obra do autor e uma cronologia detalhada. Apollinaire dizia que cada um de seus poemas era uma celebração de um acontecimento de sua vida. Faleceu em 1918, com 38 anos, vítima da pandemia de gripe espanhola que na época assolou o continente europeu.

A seguir, Rodrigo Garcia Lopes, fala sobre “Zona e Outros Poemas” e a trajetória literária de Apollinaire.

Qual a importância de Guillaume Apollinaire para a literatura do século 20?

Ele foi um dos principais poetas do século 20 e hoje é um dos mais populares da França. Não tem como falar de poesia francesa e modernista, de movimentos de vanguarda internacional na pintura e na literatura, de revolução e experimentação verbal, sem mencionar seu nome. Agitando a vida cultural parisiense como poeta, cronista, jornalista e crítico de arte, ele foi o principal responsável por firmar as reputações de Picasso, Braque, Delaunay e muitos outros artistas. Criou uma poesia multifacetada, moderna, de invenção, mas profundamente enraizada no passado, sem jamais de deixar de ser profundamente lírica. Sua reputação no mundo apenas cresce, principalmente desde que sua obra caiu em domínio público em 1989. Ele também divulgou o termo “cubismo” e cunhou o termo “surrealismo”, que fazem parte do nosso vocabulário hoje.

Alguns pesquisadores afirmam que a literatura de Apollinaire exerceu forte influência sobre escritores e poetas brasileiros modernistas da Semana de Arte Moderna de 1922. Que influência foi essa?

Até acho que essa influência poderia ter sido maior, se ele não tivesse morrido em 1918. Por aqui, o papel que seria de Apollinaire, enquanto modelo de poeta modernista, acabou ficando com o grande Blaise Cendrars, que viveu entre nós e foi fundamental para nossos modernistas. Aliás, o Cendrars não só era amigo dele como foi um dos primeiros e principais divulgadores de sua poesia entre nós. Antes disso, as ideias, textos e a poesia de Apollinaire já eram de conhecimento de alguns intelectuais brasileiros, através de jornais e revistas francesas que chegavam por aqui. Nos anos de 1920, entre seus primeiros leitores e difusores estão Oswald de Andrade, Sergio Milliet, Mario de Andrade, Ronald de Carvalho, Graça Aranha, Manuel Bandeira, Sergio Buarque de Holanda e Luis Aranha. O jovem Sérgio Buarque foi o primeiro a assinalar, em 1921, a influência de Apollinaire nos versos dos “futuristas paulistanos” Mário de Andrade, Guilherme de Almeida e Oswald de Andrade. Para Sérgio Milliet o poema “Zona” teve um papel importante no modernismo brasileiro: “Era para nós um modelo e quase o sabíamos de cor”. Manuel Bandeira escreveu, em carta a Mário, em 1925: “Cheguei à feira modernista pelo expresso Verlaine-Rimbaud-Apollinaire”.

Rodrigo Garcia Lopes: "Sem dúvida, os caligramas de Apollinaire impactaram a Poesia Concreta brasileira e a poesia visual internacional, até mais do que os concretos gostariam de admitir"
Rodrigo Garcia Lopes: "Sem dúvida, os caligramas de Apollinaire impactaram a Poesia Concreta brasileira e a poesia visual internacional, até mais do que os concretos gostariam de admitir" | Foto: Sophie Kandaouroff/Divulgação

Apollinaire foi o criador dos “caligramas”, algo muito próximo daquilo que passou a ser conhecido como “poesia visual”. A obra de Apollinaire chegou a influenciar a Poesia Concreta brasileira?

Sem dúvida seus caligramas – cujos exemplos são encontrados na antiguidade grega, no Islã, e na ‘carmina figurata’ da poesia barroca –, impactaram a Poesia Concreta brasileira e a poesia visual internacional, até mais do que os concretos gostariam de admitir. Eles o mencionam muitas vezes em seus manifestos dos anos 1950, mas sempre com ressalvas e críticas. Como tento mostrar no ensaio que abre o livro, Apollinaire não só praticava uma “poesia de estrutura” em seus caligramas como propunha outras estruturas e procedimentos, nada convencionais, nada óbvios, em poemas como “As janelas”, “Segunda-feira rua Cristina”e “Carta-oceano” que, infelizmente, passaram ao largo dos concretos. Para piorar, posteriormente Apollinaire foi apropriado pelos surrealistas, que os concretos abominavam.

Existe a lenda de que Apollinaire foi preso, em 1911, por roubar o quadro “Mona Lisa”, de Leonardo da Vince, do Museu do Louvre de Paris. O que existe de verdade nessa história?

Ele foi preso alguns dias por conta disso, foi um grande escândalo internacional, saiu até em jornais brasileiros da época. O pivô dessa confusão foi o vigarista belga Géry Pieret, que desde 1907 vinha roubando estatuetas ibéricas do Museu do Louvre, cuja segurança era precária. Em 1911 ele voltou a atacar, dessa vez escondendo algumas estatuetas na casa de Apollinaire. A polícia, a essa altura, acreditava que o roubo das estatuetas estava ligado ao da “Mona Lisa” e começou a investigar. Aí a polícia chegou em Apollinaire e Picasso, para quem o belga havia roubado estátuas ibéricas que inspirariam o famoso quadro “As Madames de Avignon”. Apollinaire não roubou a “Mona Lisa”.

Qual o critério de seleção você utilizou para definir os poemas que integram “Zona e Outros Poemas”?

A poesia dele é marcada por uma grande radicalidade e diversidade de experimentações verbais. Ele escreveu poemas de um só verso, poemas longuíssimos, poemas rimados e metrificados, poemas que se parecem com canções, poemas em verso livre, poemas visuais que pedem para serem lidos e vistos ao mesmo tempo. Ele foi um dos principais entusiastas do cubismo e da estética simultaneísta. Meu objetivo era mostrar as múltiplas facetas de um mesmo objeto. Pensei nos 77 poemas que traduzi em termos das seguintes categorias: poemas pós-simbolistas, poemas-ambulantes, poemas seminarrativos, poemas simultaneístas “cubistas”, poemas-ambientes, caligramas, poemas de guerra e poemas do “Espírito Novo”. No longo ensaio que abre o livro detalho cada “estilo”, que muitas vezes se sobrepõem.

SERVIÇO:

“Zona e Outros Poemas”

Autor – Guillaume Apollinaire

Editora – Penguin-Companhia das Letras

Tradução, prefácio, comentários e cronologia – Rodrigo Garcia Lopes

Páginas – 560

Quanto – R$ 109,90 (papel) e R$ (de-book)