“Todos deveríamos amar como amam as mães, que julgo ser como Deus ama.” Esta frase do escritor português Valter Hugo Mãe pode ser considerada a síntese de seu novo romance: “Deus na Escuridão”. Lançado pela editora Biblioteca Azul, a obra é uma saudação poética ao amor fraternal e a todas as formas do amor incondicional.

“Deus na Escuridão” narra a história de dois irmãos que habitam, com os pais, a Ilha da Madeira. O mais velho, chamado Felicíssimo, possui nove anos quando o irmão mais novo nasce. A expectativa acalentada em ter um irmão, associada à condição em que o irmão nasce, faz com que Felicíssimo desenvolva um amor incondicional. Uma irmandade que assume o amor maternal.

O irmão mais novo recebe o nome de Serafim. E o carinhoso apelido de Pouquinho por ter nascido “sem as origens”. Ou “sem as vergonhas”. Nascido sem os órgãos genitais, o menino passa a ser considerado um anjo, um santo. Rapidamente Pouquinho se torna objeto de curiosidade pelos habitantes da ilha, fator que leva Felicíssimo a multiplicar seu amor maternal, cuidados e proteção para com o irmão. Felicíssimo promove a junção do amor de irmandade com o amor maternal em uma só afetividade.

“Deus na Escuridão” é narrado pela voz de Felicíssimo. Imerso em uma realidade dura, pobre, seca e árida, o personagem transforma qualquer realidade ou acontecimento em sensações simbólicas ou carregadas de simbolismo. Uma linguagem característica da literatura de Valter Hugo Mãe e o consagrou como uma das grandes vozes da literatura portuguesa contemporânea.

OPÇÃO DE SOBREVIVÊNCIA

Para o personagem, o amor é uma opção de sobrevivência diante da falta de perspectiva social e aridez ambiental: “Amamos mais o que vemos em perigo. Amamos mais quem vemos em perigo. Somos feitos para aumentar o coração perante a família que sofre. Por vezes, nem tripas levamos dentro, nem estômago ou rins. Somos tão ocupados por amar alguém que nenhuma função que desempenhamos senão a função de amar, e todo nosso interior é o coração dilatado, esforçado como um touro jovem que se disfarça em nosso aspecto mais frágil.”

O ambiente insular possui papel determinante tanto na história narrada quanto na forma em que ela é narrada. Um ambiente de encostas íngremes, terreno pedregoso e abismos por toda parte. No posfácio que integra o livro, Hugo Mãe explica: “As ilhas geram uma supervizinhança, uma espécie de companhia em dobro que reitera as presenças de modo que pode ser sufocante. Sobreviver à ilha é também apartar quanto se possa o que está próximo, porque tudo está demasiadamente próximo e é fundamental que algo não seja tão familiar assim, não seja do nosso jeito, não nos responsabilize, não nos culpe. Julgo que minha obstinação por ilhas tem a ver com tentativas vãs de lidar com a insanável, essencial, solidão. Que tanto parece acentuar-se no sentimento do ilhéu quanto também é culpada por intensificar o vizinho, criando em cada presença uma relevância que facilmente se torna intrusiva.”

AMOR DIVINO

Em “Deus na Escuridão” o personagem principal cria uma analogia entre o amor materno e o amor divino. E coloca as mães e Deus com as mesmas inquietações diante do objeto amado: “Deus é exactamente como são as mães, que criam e depois vão ficando para trás, à distância, numa distância que parece significar que não são mais precisas, e Ele, como elas, só sabe amar acima de qualquer defeito e qualquer falha, com cada vez mais saudade, mas não sabe o caminho, não sabe por onde os filhos foram, só pode suplicar que não se percam e não se percam da vontade de voltar.”

E prossegue: “Deus está na escuridão, e tacteia por toda parte na vontade intensa de um toque, do aconchego do corpo dos filhos, um gentil toque ou abraço. E os filhos distraem-se e são incautos ou tornam-se impuros e fogem, atarefados com suas paixões e incertezas, e pensam menos no que Deus pode sofrer do que no sofrimento que haverão eles de sentir pela mais pequena contrariedade. O filhos partem sem saberem que o sentido da vida é chegar à origem.”

Nascido em Angola em 1971, com poucos anos de vida Valter Hugo Mãe fixou residência com a família em Portugal. É hoje o escritor lusitano mais lido no Brasil com uma legião de fãs e admiradores. Autor de mais de 20 obras, entre elas “O Filho de Mil Homens”, “A Desumanização”, “A Máquina de Fazer Espanhóis”, “As Doenças do Brasil”, “O Remorso de Baltazar Serapião” e “O Apocalipse dos Trabalhadores”. Por sua decisão, seus livros publicados do Brasil não seguem o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa assinado em 1990. Uma postura igualmente adotada pela maioria dos escritores portugueses publicados no Brasil.

Imagem ilustrativa da imagem Valter Hugo Mãe faz saudaçao poética ao amor incondicional
| Foto: Divulgação

SERVIÇO:

“Deus na Escuridão”

Autor – Valter Hugo Mãe

Editora – Biblioteca Azul

Prefácio – Rodrigo Amarante e Carlos Reis

Páginas – 240

Quanto – R$ 69,90 (papel), R$ 49,90 (e-book) e R$ 69,90 (audiolivro)