Leio que o senador Flávio Bolsonaro apresentou uma PEC (projeto de emenda constitucional) viabilizadora da privatização de praias no Brasil. Fui conferir, naquilo que a fala poderia estar enviesada. É isso mesmo. O tal projeto tem esse alcance – em que pese se imiscuir em um auto jabuti, tamanho o cuidado com escamotear a clareza que seria exigível em se tratando de emenda à Constituição.

Aqui o neoliberalismo fincou sua bandeira e disse: não preciso ir à lua se já tenho a areia das praias brasileiras para chamar de minhas, abraçando nossa herança colonial ao desalinho de arranjos e desarranjos que (para o bem e para o mal) conduziram nosso modelo civilizatório aos dias atuais.

A PEC desafia a pertença da praia enquanto bem da humanidade, desafetando seu significado (público) ao tempo em que cria um novo fator de exploração econômico.

Praias são públicas desde que esse mundo não tinha público, suposto que o mar é fruto da evolução darwiniana ou do criacionismo (quer queiram os com fé, quer não queiram os sem fé), como era no princípio, antes da palavra se fazer em verbo e sob a luz dos coacervados.

Por esse ângulo, a disputa privatista da praia avilta a última flor do lácio, naquilo que a areia que quebra a onda é o lugar que vamos ter quando a dor de estar ruma para o mar.

Enviesamos, deveras, os prumos e a tormenta do convívio (esquálido) demonstra que ter já é mais que ser, implementando em nosso cotidiano o desvalor das gentes – ao fim e ao cabo da semana inglesa sobreviver há séculos.

A violência da hipótese de privatização da praia remete aos sonhos molhados que a juventude me concedeu e, assim (meio trôpego, meio desperto) procuro entender o que leva essa gente a se curvar ao grande capital.

A indignação se levanta e aponta os modernos capitães do mato (chicote em punho e joelhos na areia) e sua obediência canina aos interesses do capital, em polo de espera das migalhas caídas da mesa onde nenhum de nós tem assento – enquanto isso, ‘poucos sabem qual é o rio de minha aldeia e para onde ele vai. E donde ele vem’.

O que sabemos, então? Sabemos que há um demônio à espreita ao final da votação da PEC privatizante de praia no Brasil. Se vamos com ele dançar, isso depende dos votos de nossos representantes no Congresso.

Voltemos à praia – afinal a areia do tempo remete ao mar e o mar grita a lembrança de meu primogênito rumando à Lisboa. João Neto morou em Alfama (bairro boêmio histórico lisboeta, tido por muitos como o berço do fado) em um prédio secular. Do apartamento se avistava, por uma pequena janela, o Tejo.

Quando lá estive pude tomar alguns vinhos (Quinta do Vale Dona Maria, um dos amores que a vida me deu) mirando o rio da história, ao tempo em que perseguia os caminhos da poesia imortal de Alberto Caeiro – que me abraçava desde que a li, pela vez primeira, na primavera de 1977.

‘O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. O Tejo tem grande navios e navega nele ainda, para aqueles que veem em tudo o que lá não está, a memória das naus. O Tejo desce de Espanha e o Tejo entra no mar em Portugal. Toda a gente sabe isso. Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia e para onde ele vai e donde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente, é mais livre e maior o rio da minha aldeia. Pelo Tejo vai-se para o mundo. Para além do Tejo há a América e a fortuna daqueles que a encontram. Ninguém nunca pensou no que há para além do rio da minha aldeia. O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele.’

Ir para o mundo sempre foi da natureza do português. Bem por isso a porta de saída de meu avô paterno (Simão Augusto, emigrante de Trás os Montes no início do século XX) foi a América e ele aqui veio ser o que lá não conseguiria ter sido – palavras dele, alguns dias antes de sua morte.

Na América meu avô fez sua história, ao sopé de uma família grande e apaixonada. Filhos, netos e bisnetos depois, as diferenças se acentuaram e o que nos unia era o mar e a paixão de suas vazões, onde Europa e América estabeleceram uma corrente de idas e vindas, cujo aporte derradeiro sempre foi a areia das praias onde os portos fincavam as bandeiras.

Quarenta anos após o passamento do avô Simão, meu filho fez sua viagem de volta e esse gesto me emociona até hoje – o que me segurou as lágrimas foi o sal do mar em profusão de espírito com a areia da praia.

Nessa medida, ao ver o Tejo da janela de onde morou meu filho, assenti na grandeza de Caeiro, justamente porquanto o encontro de meu avô com o seu destino teve, na areia da praia, um ponto comum, onde saudade abraçou necessidade. Lá Simão se despediu da mãe que jamais tornou a ver. Cá eu beijei João sabendo que tornaria a encontrá-lo.

Entrementes, o que confortou foram os portos (partida e chegada), cuja diferença fundante esteve na possibilidade de pisar um chão que não pertencia a ninguém, senão à minha dor.

Meu avô é cria do Tejo. Eu do Ribeirão Jagora. Entre nós há um oceano de diferenças redimidas no mar da vida. O ponto em comum? A areia do tempo que o senador Bolsonaro quer privatizar, enterrando um pouco a minha história.

Saudade pai. Você ensinou o caminho da praia!